Parecer da APRA ao Projecto de Decreto-Lei |
Analisado
o projecto das alterações ao regime jurídico aplicável à actividade de ama, a
APRA não pode deixar de lamentar que nenhuma das reivindicações apresentadas às
entidades competentes, ao longo dos anos, a última das quais, em 21 de Novembro
de 2011, apresentada à Exma. Sra. Dra. Teresa Bomba, Adjunta do Ministro da
Solidariedade e da Segurança Social, tenha sido introduzida no projecto que
agora se comenta. Muito pelo contrário.
Antes
de a APRA se pronunciar sobre os comentários que tem a fazer ao projecto
propriamente dito, importa referir quais as principais reivindicações que têm
vindo a ser apresentadas:
1.
Direito
aos contratos de trabalho
A
primeira reivindicação das amas portuguesas prende-se com o seu estatuto
laboral. Reivindica o direito a um contrato de trabalho com as instituições de
enquadramento (Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e as instituições
particulares de solidariedade social ou equiparadas, desde que disponham de
creche), com os direitos e obrigações inerentes a uma relação contratual por
conta de outrem e regulada pelo Código do Trabalho.
As
amas exigem a celebração dos devidos contratos de trabalho, observando a
legalidade e terminando com os falsos recibos verdes, que lhes seja reconhecido o estatuto
jurídico de trabalhadoras por conta de outrem, com todos os direitos e
obrigações que lhe são inerentes.
Desde
1984, que as amas têm formalmente trabalhado para o Instituto de Segurança
Social através de falsos recibos verdes, como se de prestadoras de serviços se
tratassem, o que não corresponde à realidade nem nunca correspondeu, isto
porque,
¾
Todas
as condições de acesso, permanência e cessação são definidas pelo Instituto da
Segurança Social;
¾
O
horário, local de trabalho e retribuição é fixado unilateralmente pelo
Instituto da Segurança Social;
¾
As
amas têm que apresentar justificação de faltas sempre que estejam impedidas de
prestar o seu trabalho e, apesar de as faltas poderem ser consideradas
justificadas, implicam sempre perda de retribuição;
¾
O
desenvolvimento do seu trabalho é feito de acordo com directivas claras e
específicas do Instituto da Segurança Social que fiscaliza o seu cumprimento,
com total subordinação jurídica;
¾
Os
equipamentos e instrumentos de trabalho são definidos pelo Instituto da
Segurança Social;
Por
isso, as condições objectivas da sua actividade demonstram claramente que são
desde sempre trabalhadoras por contra de outrem, nos termos estabelecidos no
artigo 12.º do Código do Trabalho. É este incumprimento grosseiro que está na
origem de todos os outros problemas. O reconhecimento da relação laboral é um
direito básico e que não pode continuar a ser negado pelo Instituto da
Segurança Social;
2.
Prestações
sociais
Em
sequência, as contribuições devidas ao Instituto da Segurança Social deveriam
ser idênticas às dos restantes trabalhadores por conta de outrem (11% sobre o
rendimento mensal).
Em
idêntico sentido, o valor que servirá de base à reforma das amas não deverá ser
o IAS, mas o seu vencimento, como acontece com os trabalhadores por conta de
outrem.
3.
Montante
do salário mensal
Fim
da discriminação do valor pago por criança, o qual deve ser fixo, isto porque,
às duas primeiras crianças corresponde um valor reributivo (179,94€/cada) e às
terceiras e quartas crianças corresponde um outro valor (201,54€/cada). No
entanto, sempre que uma criança falta, o desconto efectuado é sempre pelo valor
mais alto, independentemente do valor a que corresponde à criança que faltou.
A
atribuição do número de crianças é decisão unilateral dos serviços, pelo que a
retribuição, tal como se encontra actualmente definida, é manifestamente
injusta e violadora das mais elementares garantias dos trabalhadores.
O
subsídio mensal para alimentação e o suplemento alimentar (15,04€ por criança)
mantêm o mesmo valor desde 2009, apesar da inflação e do custo de vida ser
bastante superior.
O
subsídio mensal para alimentação das crianças deveria ser pago no início do
mês, sob pena de continuarem a ser as amas a ter que suportar a alimentação das
crianças a suas expensas e deveria ser igual para todas as crianças, isto
porque, é atribuído valor diferente em função dos escalões de abono de família
(69,17€ para crianças que se encontrem no primeiro e segundo escalões de abono
de família e 34,59€ para as que se encontrem no terceiro, quarto e quinto
escalões de abono de família), como se o direito a alimentação de uma criança
devesse ser diferente em função do abono de família. Por força desta diferença
de tratamento é a ama que naturalmente suporta uma alimentação igual e digna a
todas as crianças. A situação é tanto mais grave quanto é certo que o valor
diário que é atribuído à ama não raras vezes serve para garantir toda a
alimentação de um dia das crianças.
O
salário mensal das amas deveria ser fixado em 806,16€, valor correspondente ao
limite máximo de 4 crianças, considerando o valor actualmente atribuído às
terceiras e quartas crianças (201,54€), cuja última actualização ocorreu em
2009 (há mais de 4 anos).
O
montante deverá ser fixo, independentemente do número de crianças ao cuidado da
ama porquanto é o Instituto da Segurança Social que coloca as crianças.
Deverão
ficar salvaguardadas as situações de acréscimo de retribuição em caso de
acolhimento de crianças com deficiência e, naturalmente, as que venham a
ocorrer por força do acréscimo do horário de trabalho.
4.
Horário
de trabalho
As
amas estão obrigadas ao cumprimento de uma jornada diária de trabalho de 12
horas, em função das necessidades das famílias e sem qualquer contrapartida
remuneratória.
As
amas reivindicam a fixação de um horário de trabalho de 40 horas semanais, em
conformidade com o Código do Trabalho.
Atendendo
às eventuais necessidades específicas das famílias, o trabalho prestado para
além do horário diário de 8 horas deverá ser considerado suplementar e
retribuído como tal. Em alternativa, deverá ser considerada a contratualização
com as amas de isenção de horário de trabalho, também essa retribuída nos
termos do Código do Trabalho.
Confrontando
as reivindicações da APRA que o legislador não pode desconhecer e deixar de
considerar com o texto do projecto, resulta por demais evidente, reitera-se,
que nenhuma das reivindicações e preocupações das amas foram levadas em linha
de conta nas alterações ao regime jurídico aplicável à actividade de ama.
Desde
logo, a APRA congratula-se com a iniciativa do Governo de proceder à alteração
do quadro legal vigente da actividade de ama por forma a corresponder mais
eficazmente à realidade existente e a considerar o recurso à ama, para além de
uma alternativa à creche, uma opção dos pais ou de quem exerce as
responsabilidades parentais, há muito reclamada e aguardada pelas
profissionais do sector.
Congratula-se
que a revisão do regime jurídico assente em critérios de rigor, exigência e
qualidade, nomeadamente, no que à fiscalização e acompanhamento das
profissionais concerne. Diga-se a este propósito que desde 2007 que o Provedor
de Justiça reclamava da necessidade de intensificar a fiscalização da
actividade.
Congratula-se
também com o estabelecido no Programa do Governo que pretende ampliar a rede
de amas no sentido de reforçar a sua formação, qualificação e acompanhamento e,
em simultâneo, permitir a integração das crianças em percursos plenos de
desenvolvimento pessoal, garantindo aos pais ou a quem exerce as
responsabilidades parentais uma melhor compatibilização entre a vida familiar e
vida profissional.
Sucede
porém que, se constata que a projecto de alterações não reflecte no seu
articulado as circunstâncias constantes do preâmbulo e com as quais a APRA se
congratulou.
Comentários
ao projecto
1.
Prestação
de serviços
A
APRA lamenta profundamente que as amas sejam a única categoria profissional onde
o legislador exige que a prestação do trabalho seja em regime de prestação de
serviços. Com efeito, tanto quanto julgamos saber, nem sequer as profissões
tendencial e historicamente associadas ao trabalho independente (p.ex.
advogados, arquitectos, médicos) se encontram obrigadas por lei a ser
contratualizadas obrigatoriamente como prestação de serviços.
Em
sequência, a APRA rejeita frontalmente todas as disposições legais do projecto
que assentam na premissa de as amas exercerem o seu trabalho mediante
contratualização da prestação de serviços [artigos 2.º, 3.º, 17.º, alínea a),
18.º, 20.º, alínea c), 21.º, n.º 1, 30.º, n.ºs 1, alíneas d) e g), 35.º, n.º 1,
alínea b) e 38.º do projecto de Decreto-Lei], isto porque, a realidade do
exercício efectivo do seu trabalho aponta diametralmente em sentido oposto.
Neste
sentido, são várias as normas do Projecto que em tudo revelam a ausência de
independência e, por outro lado, a total subordinação jurídica das amas –
artigos 5.º, 8.º, 17.º, alínea c), g), h), k), 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, 21.º,
n.º 1, 23.º a 25.º, 27.º, 29.º, 30.º a 35.º, 37.º, 39.º, 40.º.
Com
efeito, as amas deveriam ter idêntico tratamento relativamente às amas que
prestam trabalho directamente nas instituições de enquadramento, não existindo
nenhuma justificação para que assim não seja. Aliás, a única justificação que a
APRA encontra para a maioria das normas do Projecto com as quais não concorda
prende-se com a perpetuação de uma imensa ilegalidade cometida pelo próprio
Estado, ao violar frontal e reiteramente as condições de trabalho e as
garantias das amas enquanto verdadeiras trabalhadoras.
A
APRA não alcança o sentido do artigo 41º do projecto, porquanto parece resultar
que as amas que trabalham actualmente, nessa qualidade para o Instituto da
Segurança Social ficariam fora do presente projecto, o que não é aceitável.
Considerando a descretação a que seriam votadas e a total desconsideração
destas profissionais e da experiência que a grande maioria acumulou ao longo de
anos de trabalho com crianças, pelo que o presente projecto deverá clarificar e
concretizar a recondução das amas actualmente, ao serviço do ISS no novo Regime
Jurídico que vier a ser aplicado à sua actividade.
2.
Horário
de trabalho
A
APRA rejeita frontalmente o teor do artigo 21.º do projecto de Decreto-Lei por
todas as razões supra explanadas nas suas reivindicações. É absolutamente
inadmissível fixar em diploma legal um horário que não [deve], em
regra, ser superior a 11 horas.
Considerando
que o legislador entende que a ama exerce por conta própria e de forma
independente o seu trabalho não pode o presente projecto de Decreto-Lei fixar o
seu horário de trabalho em função de terceiros, o que só por si, põe em causa
de forma inequívoca a pretendida independência da ama e, reforça o que vem
sendo reivindicado pela APRA de que as amas são verdadeiras trabalhadoras por
conta de outrem, nos termos da presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho.
Tal
proposta viola, além da jornada diária de trabalho (8 horas/dia), todos os
direitos de qualquer trabalhador, nomeadamente, ao descanso, vida familiar e ao
ser compensado pelo trabalho suplementar que preste.
Ao
propor horário em regra não superior a 11 horas, sem qualquer referência, à
remuneração pelo acréscimo de horas relativamente à jornada diária normal
perspectiva-se que seja intenção do legislador legalizar uma verdadeira
exploração humana por parte do próprio Estado.
3.
Deveres
da ama | artigo 17.º do Projecto de Decreto-Lei
Por
facilidade de exposição, a APRA permite-se transcrever o artigo 17.º:
Artigo 17.º
Deveres da ama
Constituem
deveres da ama:
a) Garantir a qualidade dos serviços
prestados, tendo em conta o desenvolvimento físico e emocional da criança;
b) Celebrar contrato de seguro de acidentes
pessoais das crianças;
c) Frequentar as ações de formação inicial e
contínua, nos termos do artigo 8.º;
d) Colaborar com a família garantindo
permanente informação de forma a assegurar o bem-estar da criança;
e) Permitir o acesso da família à habitação,
sempre que necessário;
f) Avisar, de imediato, em caso de doença ou
acidente, a família da criança e tomar as providências adequadas quando as
situações revistam carácter de urgência;
g) Facultar aos serviços competentes de
fiscalização e inspeção o acesso à habitação e às informações indispensáveis à
avaliação da respectiva atividade;
h) Renovar, anualmente, o documento
comprovativo do seu estado de saúde, bem como o das pessoas que consigo
coabitem;
i)
Facultar
à família o acesso ao processo individual da criança e ao processo da atividade
a que se refere o artigo 20.º;
j)
Comunicar
às entidades competentes situações que indiciem eventuais maus-tratos às
crianças;
k) Informar a família da criança, com a
antecedência de 60 dias, da intenção de interromper ou cessar a atividade,
comunicando-o em simultâneo às entidades que emitiram a respectiva autorização
para o exercício da atividade;
l)
Dispor
de livro de reclamações nos termos da legislação vigente.
A
APRA rejeita o dever de a ama celebrar contrato de seguro de acidentes pessoais
das crianças [alínea b)]. Essa circunstância não tem o menor cabimento legal,
pois tal obrigação deveria ser da responsabilidade dos pais ou de quem exerce
as responsabilidades parentais. Não se encontra justificação legal para que
seja a ama e a expensas suas que tenha que celebrar tais seguros. Mesmo que se
admitisse que a ama fosse uma trabalhadora independente, sem conceder, quanto
muito estaria obrigada a celebrar seguros de responsabilidade civil e de
acidentes de trabalho por conta própria.
Compreende-se
a necessidade da existência de tal seguro, mas entende-se que a celebração do
mesmo deveria recair sobre as instituições de enquadramento ou sobre os pais ou
quem exerce as responsabilidades parentais.
A
APRA rejeita o dever de renovar, anualmente, o documento comprovativo do seu
estado de saúde, bem como o das pessoas que consigo coabitem [alínea h)]
porque se desconhece igual obrigatoriedade para qualquer outro trabalhador
independente ou mesmo trabalhador por conta de outrem, para mais, extensível ao
seu agregado familiar, o que põe seriamente em crise o direito à privacidade e
à vida privada da ama e da sua família. Em idêntico sentido, se repudia o
estabelecido no artigo 10.º, n.º 2, alínea c).
Deveriam
as instituições de enquadramento ter contratos de medicina no trabalho, devendo
nele ser inscritas todas as amas que para aquelas prestem trabalho e assim se
cumpria o espírito da lei – aferir das condições de saúde da ama para a
prestação do trabalho – sem violar os princípios constitucionais da vida
privada e familiar e, bem assim, se conformava os direitos e obrigações das
partes na relação laboral como a das amas efectivamente é.
A APRA rejeita o dever de dispor de livro
de reclamações nos termos da legislação vigente [alínea l)] porquanto as amas
são trabalhadoras por conta de outrem e não prestadoras de serviços. Por outro
lado, tal dever não tem cabimento legal na obrigatoriedade fixada no n.º 2 do
artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, com as suas
sucessivas alterações, nos termos do qual o presente
decreto-lei institui a obrigatoriedade de existência e disponibilização do
livro de reclamações em todos os estabelecimentos de fornecimento de bens ou
prestação de serviços, designadamente os constantes do anexo I do presente
decreto -lei e que dele faz parte integrante, mercê de a sua casa
não ser um estabelecimento, pelo que, tal obrigatoriedade deve recair sobre as
instituições de enquadramento.
4. Equipamento e material
A APRA não pode deixar de concordar com o
estabelecido no artigo 19.º no que às exigências relativas ao equipamento e
material diz respeito. No entanto, o artigo 19.º deveria explicitar que tais
equipamentos e materiais têm que ser fornecidos pelas instituições de
enquadramento, suportando o seu custo e assim, garantindo que todos os
equipamentos são certificados e homologados e que todas as crianças beneficiam
das mesmas condições.
Não se alcança a razão pela qual esta
obrigatoriedade das amas e não existe no projecto igual obrigatoriedade para as
instituições de enquadramento (vide artigo 30.º).
Em idêntico sentido e considerando a
proposta vertida na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º do Projecto e o disposto
no anexo I, que a APRA apoia, importa prever no Projecto que os encargos com as
condições exigidas sejam suportadas pelas instituições de acolhimento à
semelhança do que acontece nessas mesmas instituições.
5. Regime contra ordenacional
A APRA concorda com o poder de
fiscalização atribuído às instituições de enquadramento e as eventuais sanções
decorrentes do não cumprimento dos seus deveres, mas considera que, estando no
âmbito de uma relação jurídica subordinada, qualquer incumprimento deverá ser
objecto de procedimento disciplinar, em conformidade com o Código do Trabalho,
sem prejuízo de eventual responsabilidade civil ou criminal que venha a ter
lugar e não de um qualquer regime contra ordenacional.
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